terça-feira, 19 de julho de 2011

CFA- caminhos fáceis de achar

Por referência à Caio Fernando Abreu


Dói, vez em quando dói, quase sempre dói.
E como dor, é preciso que doa e anuncie seu lugar.
Antes era amor, sempre amor, quase sempre amado.
E não importa o antes, se depois do quando, eu já não me achava.
Se todo dia, todo gosto exasperava ausência e fim de tarde.
Dói-de-dor-doída, de lágrima caída e gosto de sal.
Estive mal, tal qual um ovo apunhalado.
Quem quiser, que me coma cru e ácido e azedo.
De homem, um arremedo.
E a dor não falta.
Passa e escorrega a baba sobre seios que não são os dela.
Estive prostrado em mim mesmo, esperando não sei o quê do dia seguinte.
E estive no dia seguinte sendo um resto do que houvera.
Embora tonto e, portanto, chutei bola pra frente.
Corri adiante, me fiz diferente.
Dói, vez em quando dói, quase sempre dói, mas uma dor deveras contente.
Agora quem quiser que aguente, fui à forra.




sexta-feira, 15 de julho de 2011

Mini ficção I


Ela era uma sergipana do interior. Olhos claros, cabelos anelados e fartos. De uma beleza sutil, foi por muitas vezes ignorada por aqueles de olhar mais distraído. Aprendera desde cedo os afazeres domésticos e apesar do pouco estudo, era safa. Tragava as ideias que pairavam no ar esfumaçado da biblioteca após as reuniões dos homens e enchia os pulmões. Foi criada com os irmãos, homens e mais velhos. Não cabe aqui discorrer sobre cada um deles, o importante é saber que o mais abastado estava de partida para a Bahia. Naquela época dizia-se da boa terra o que hoje se diz de São Paulo: o futuro mudou-se pra lá. Ela tomou conhecimento dessa notícia pelas frestas da porta. Não que gostasse de espiar a vida alheia, mas ouvir os homens e seus assuntos importantes era sua pedagogia.

De coração agoniado e correndo para esconder-se de todos, foi para os fundos da casa. (Eu nunca escutei nada a respeito, e talvez seja coisa de um narrador que fantasia, mas desconfio que algo mais se escondia lá naqueles fundos). Ela tinha certeza.

- “Talvez ele me leve”. “Talvez ele me leve”. Essa passou a ser sua prece.

De joelhos e cabeça baixa em frente a uma parede enegrecida pela fumaça do carvão e ornada por teias de aranha dignas de um filme de terror, ela pedia. Isso, de fazer sua oração nesse quarto abandonado e de paredes queimadas, não tinha para mim, mero observador, nenhum motivo aparente. Mas em verdade vos digo, era um pedido dotado de uma intensidade colorida e da sua cabeça emanava uma aura clara. Eram palavras ditas em pensamento, embora pudessem ser ensurdecedoras em certos momentos de audição.
Os dias passavam rápidos entre as conversas na biblioteca e suas fugas para o fundo da casa. Sem muita escolha e ansiosa para encontrar o seu futuro, ela imaginava a Bahia. Via ondas do mar na espuma do sabão e se distraía ao perceber sua imagem refletida no espelho d´agua do riacho que corria margeando a casa. Era menina? Era mulher? Admirava a força dos crioulos carregando sacos de peso abissal e a beleza de outros crioulos tocando tambores, enquanto moças igualmente negras e de turbante, dançavam em passos ritmados. Todos suados, brilhando sob o sol escaldante, exibiam seus dentes brancos num sorriso capaz de alegrar o mundo. Talvez fosse aquilo o carnaval. Talvez a felicidade fosse negra, de sorriso largo e branco. “Talvez ele me leve”. Ela sonhava.

Mini ficção II

No próximo dia 26 completaria cinco anos que ele estava lá. Depois de um acidente automobilístico no qual a quinta vértebra da sua coluna não foi capaz de absorver o impacto, a fratura o deixou tetraplégico e a pancada na cabeça relegou sua mente a um irreversível estado de dormência, ele estava fadado a viver eternamente na caixa de sonhos.

E, embora a profissão dela exigisse isenção e coração duro, e ela, como era sabido por todos, ser extremamente profissional e impassível, aquele paciente, fazia-a esquecer do juramento.

- Em coma e tetraplégico. Isso não é vida!

Ela repetia isso quase todo dia, não importava o lugar, nem a quem. Apesar de todos no Hospital saberem da sua indignação com o destino e da sua queixa com Deus pelo estado daquele paciente, as palavras dela fazia eco pelos corredores.

Todavia, naquele Hospital, poucos sabiam que há um lugar na alma humana onde estão os ouvidos e os olhos internos.Poucos, porque afinal, isso não se aprende nas faculdades de medicina, mas já nasce com a gente, mesmo não podendo ser detectado em algum desses aparelhos de diagnóstico por imagem, existe. É lá onde falamos conosco e nos reconhecemos. É a alma em estado puro.

Ocorre que no dia do aniversário de cinco anos da internação daquele paciente, nada mudou no protocolo: comida pela sonda, troca de fralda e banho com lenços umedecidos. Bem como nada mudou no paciente: sem movimento, sem reação, músculo involuntário batendo e sacos se enchendo com a ajuda de aparelhos. No entanto, dentro dela, lá naquele canto que a gente sabe que existe, havia uma luz.

Naquele dia, completaria cinco anos que ele estava preso no seu próprio corpo. Naquele dia 26, ela fez dele um homem livre. Naquele dia, a liberdade acendeu dentro dela e ninguém ouviu o ruído dos seus reclames.

Mini ficção III

Ele foi embora sem olhar para trás. Esse gesto, o de ir embora, não era novo aos olhos dela. Ele o tinha feito outras vezes, mas, nesta feita, algo no seu jeito de caminhar denunciava: ele não vai voltar. Talvez fosse sua pisada supinada, a bolsa a tiracolo ou o bom dia desanimado. Talvez fosse o peso de carregar tantas mensagens. O fato, é que ele não voltou.

Se morreu, se caiu, se casou, pediu aposentadoria ou foi mordido por um cachorro; se mudou de rota, de serviço ou de vida. Se tem mulher, filho, família. Se é João, Pedro ou Astrogildo. Ela nunca vai saber. 

Coube a ela imaginar que fatídico acontecimento ocasionou o seu sumiço; construir todo tipo de ilação para sua ausência, a fito de entender porque, simplesmente, na manhã de um belo dia, ele não veio e não disse, com sua voz macia, no interfone:

- Bom dia. É o carteiro. 


segunda-feira, 4 de julho de 2011

Sonhos e Castelos de Areia


É que tudo começa na Bahia.
O calor, manhã nascendo, feixes de luz entrecortados pelas palmas dos coqueiros eram flashs. Um vermelho intenso era tudo que ele via. O sol ardia nas suas pupilas, mas o sono insistia. Estava claro que era um sonho. Esse jogo de luz e sombra, do sol com a palha do coqueiro, só poderia ser um sonho. Desses que pregam peças, nos colocam no centro de um furacão a girar. E girando como num tango, frenético e despencado, ele acordou. Mareado do que viveu. Perdido no intrincado confuso dos lençóis e fronhas. Afogado na realidade. Bebeu água na fonte, mas a expressão que lhe ornava a fronte, era saudade.
O quarto era simples. Um ventilador sem grade sobre o criado mudo fazia som ambiente. Uma gaveta, bíblia sagrada para os aflitos e um abajur de luz amarela.  As paredes azuis, pintadas de tinta cal, confundiam a noite sobre a hora de chegar. E a noite era mesmo preguiçosa naquele lugar. Num ponto qualquer entre Porto Seguro e Salvador, uma esquina de praia, onde o mar toca a brisa e tudo umedece de sal e desejo.
É lá que repousam seus dias tranquilos. Estendidos ao sol, em total intimidade com o calor das horas felizes. Os segundos de orgia e bálsamo se entrelaçavam no seu DNA. Ventos fortes exortavam as nuvens negras do temporal e o vento terral que jogava fora o telhado deixava nua sua memória perante o julgamento infame da verdade.
- Ah, a verdade.
É que tudo se transforma em São Paulo.
O cinza, estrelas se escondendo na fumaça da manhã, o dia estranho, o sorriso tímido, a moça desconcertada. Cigarro na boca e uma saia de vinil preta cobrindo apenas 1/3 da meia calça vermelha, bota retrô transada em qualquer brechó. Pisava o chão numa marcha desalinhada, os ombros muito arqueados para trás emprestavam aos braços longilíneos o motivo para uma asa. Estava para se perder no próximo cruzamento.  E quando ele a encontrou, parada no meio da Paulista, olhando para o infinito que corria ao longo dos arranha céus, indagava a si mesma: - como podem ser tão altos e duros, olhando assim, de cima, um olhar concreto?
E discreto, para si mesmo, ele respondia: Como pode? Como pode uma pessoa mudar assim?
A pergunta vinha sufocante como gás carbônico. É guerra, é caos. Ele via nos livros.
Como pôde perder de vista a esquina dobrada, o fluxo da desordem beirando o meio fio, atentando contra qualquer forma de vida que se arriscasse a florescer. Uma água maligna. Mistura corrosiva de poeira e ódio e pressa e cobiça. Um veneno destilado da boca dessa imensa serpente prestes a engoli-lo, mas não sem antes apertar os ossos do seu crânio contra o concreto, anuviar suas pupilas e o jogar à margem de si mesmo.
Era no meio de pensamentos transtornados que repousava a sua calma. Era preciso dizer. Sim, era preciso se livrar dessa bola amorfa que tapava sua garganta. O silêncio lhe dava náuseas.
Ele deteve-se à sua frente. Olhou-a nos olhos. Segurou no pulso do braço esquerdo usando o polegar e o indicador como uma algema. Ela tentou se livrar, mas o grito dele a paralisou.  
-Você precisa aceitar. Eles só querem teu bem. A vida que você quer não leva a lugar nenhum, nem dá camisa a ninguém. Vem viver comigo, a nossa casa te espera. A comida está no fogo, a mesa está posta. Vem meu amor, você vai ver como todos te admiram, reconhecem tua força e cuidarão da sua enfermidade.
- Não me submeto se é isso que você quer saber. Eu apenas preciso aceitar? Ah, nem tudo é passível de explicação, nem tudo carece do teu entendimento. Que vá a merda você e suas conjecturas. Essa moral falida de família feliz. Deixe-a nos portas retratos, nas verdades maquiadas na mesa de jantar. Esse peso, que carregue sozinho.
As palavras dela ecoavam no vazio entre os prédios. O trânsito parecia mudo. Era como se o mundo dependesse do desfecho daquela conversa. Era como se ambos arriscassem um jogo perigoso sobre a linha tênue que separa amor e ódio.
- Você não precisa se punir assim. Essa vida não te pertence. Eu te perdoo e todos te perdoarão. Esquece essa loucura e volta pra mim. Volta para você mesma, vai buscar quem você foi onde ficou.
Falava aquilo imaginando uma cruz nos ombros arqueados dela. Sobre as asas de anjo maculado pelas idas e vindas à Rua Augusta, ele queria por o peso do mundo.
- Só há cruz quando se há pecado. E esse teu discurso ensaiado, cheio de pedras-palavras, não faz se não me deixar mais forte. Prepara teu bucho. Lava tua cara. Penteia teus cabelos. Cuida das tuas chagas. A hora de partir é chegada. Vou-me embora sem medo. Pelo lampejo divino que iluminará minha estrada, partirei com o primeiro raio de sol. E você verá o meu ser, cheio de luz, cumprir o destino fadado. Esqueça-se dessa e  enxerga a mim. A moça pela estrada a fora, alheia ao teu mundo e ao teu pecado inventado.
Era o fim do amor e o começo do desespero. Perder seu anjo para o mundo era demais pra ele. Desaprendeu a dividir. O que era seu, era seu e pronto, não cansava de repetir. Só ele podia desistir, não cabia a ela colocar ponto final em nada. Ele era o dono dessa história. Uma fábula mal contada, cheia de verdades desfocadas, permeada de desatinos e cores borradas. Era um sonho de vida nova, delírio de cidade grande.
A esperança se erguia, e ao longe parecia firme, estruturada. Causava admiração nos amigos, inveja nos inimigos e descrença nos despeitados. A esperança era um templo. E naquele lugar, toda palavra ganhava som de oração. Num altar cosmopolita, enfeitado por falsas promessas, o amor definhava.
Pagaram. Deixaram ferida nova virar chaga antiga. E na cidade grande onde tudo corrói como o ferro lambido pela maresia, como vida encharcada pelo cotidiano; Era tudo novo e mesmice. Tudo certo e confuso. Tudo seu, tudo cinza. Sem brisa pra refrescar o tempo.
E o tempo fechou. Era o céu, era cinza e choveu. O castelo desmoronou, o sonho caiu. O amor mudou. Ela mudou. E tudo ao seu redor se transformou.
- Os prédios e os castelos de areia se alimentam dos sonhos. Ela disse, olhando-o com olhos de quem vai.
Ele insistiu: 
- Embora os sonhos desmoronem, é preciso vivê-los, é necessário pintá-los. É preciso lembrá-los e existí-los em sua plenitude. Mesmo quando tudo que parece sólido se desmanchar no ar, temos que acreditar. 
- Me deixe. Permita que eu vá. Não olhe para trás. É sonho. E é meu. Vou levar você comigo. Porém, sonho não se compartilha e não se empresta. Fica com Deus. Cuide de você. Eu cuidarei de mim. Fica bem. Te quero bem. Tchau.
Pelo cinza do céu vazava um feixe de luz. E a prata do seu punhal ganhou tons dourados. O brilho ofuscou suas vistas, iluminou sua ira. Era sonho e era dele. E ele não admitia que fosse diferente.
Rasgou a carne dela num movimento preciso. O metal deslizava contra as fibras do útero. E em voz baixa, como quem está a contar um segredo, ele murmurou.
- Não terás vida nova, nem vida antiga. Me mostra. Me diz onde está você. Aquela menina de cabelo encaracolado, de olhar risonho, pra onde foi? Onde você a escondeu?
E mesmo dentro dela. Mesmo tendo o sangue da amada em suas mãos, ele não a reconhecia.
Um outro golpe certeiro interrompeu o gemido dela. E logo depois outro, seguido de mais um.
O anjo desfaleceu. A luz não veio. O caminho acabou.
Naquele momento, em meio aos prédios, a multidão e a fumaça dos escapamentos, a serpente deu o bote. O sangue destilava o veneno na vertigem do cotidiano. Ele sentia a areia do mar da Bahia afundar debaixo dos seus pés. As ondas iam e vinham pelo negro do asfalto. O vento nordeste encrespava o mar e acariciava os prédios. O sol, as palhas do coqueiro. A sombra, o cinza do céu.
Só podia ser um sonho. Desses que nos botam por demais confusos. Sem saber se vivemos ou se sonhamos. Sem saber o quanto da vida é sonho e quanto do sonho é seu.
Ele cavava. Todos os dias, na maré seca, ele construía um castelo de areia. Todo dia, na maré cheia, seu castelo ruía. Sonhos e castelos de areia. Vaivém da vida, vaivém da maré.
Era real. E um vermelho intenso era tudo o que ele via.